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A bomba

Talvez você esteja sentindo esse mesmo incômodo. Alguma coisa parece estar errada, mas não está visível. Você se arruma na cadeira, mas não é isso. É como se estivesse no ar, mas não sei. É menos concreto que isso. Nalguma torção no éter talvez.

Como seria prudente checarmos ao sentirmos incômodos recorrentes, vamos tentar fazer um diagnóstico do que pode estar ocorrendo.

Rascunhando nosso cenário

Posso dizer que senti um puxão nesse músculo inflamado e invisível quando topei com esse vídeo do Bill Gates no Linkedin. Talvez seja uma pista para termos um ponto de partida.

Esse vídeo do tio Bill conta essa situação extremamente preocupante — que junto dessa produção meio descolada tem um efeito irônico de filme de terror (tipo um Brinquedo Assassino). Caso você tenha tido preguiça de ver (o que eu duvido muito, pois como você teria preguiça de ver algo que eu te indiquei?), o Bill Gates está conversando sobre a emissão de gases do efeito estufa. Segundo ele e suas fontes, mesmo que zerássemos a emissão de gases do efeito estufa na produção de energia elétrica — o que seria feito extraordinário, que estamos absolutamente longe de atingir — isso equivaleria a apenas 24% do total de gases emitidos. Como você já deve saber por esse ser um tema tão insistente na nossa era (apesar que, também na nossa era, o básico do conhecimento não é consenso) já estamos no limite ou mesmo passamos desse limite de gases do efeito estufa na atmosfera.

Além dessa “cabeça verde vomitante e girante”, você reparou em outro detalhe do nosso filme de terror? Segundo esse mesmo vídeo, Bill Gates (fazendo aqui um bico como mensageiro das trevas) informa que da data de hoje até 2040, a humanidade construirá o equivalente a uma Nova Iorque por mês no mundo. Pausa dramática. Uma Nova Iorque por mês. Isso, numa conta de boteco aqui, é igual a 250 novas Novas Iorques. Por acaso você acha que os impactos disso se limitam ao efeito estufa? O que uma população em crescimento junto com um consumo crescente pode trazer de impactos para o mundo?

O que estamos fazendo?

Em primeiro lugar, aparentemente não estamos em consenso da urgência do problema em que estamos metidos e, para uma ala mais extrema, nem mesmo que haja qualquer problema no planeta. Por isso, apesar de avanços, é predominante a inação. Mas inação talvez não seja o mais correto. Um observador externo (alienígena) poderia até pensar que estamos coletivamente investidos em pisar no acelerador para cair no barranco mais rápido.

Nós humanos, gerentes do Antropoceno, não temos sido eficientes, muito menos generosos. O meio ambiente, para além dos danos do efeito estufa, está sendo empurrado cada vez mais para o limite. Os rios e oceanos do nosso planeta estão sendo poluídos constantemente com nosso esgoto, nosso plástico, metais pesados decorrentes da produção de nossos bens, além de resíduos de todo tipo. Sobre as áreas verdes, o desmatamento continua em escala industrial, seja para loteamento, seja para agronegócio, seja por exploração madeireira, grilagem ou qualquer outro motivo torpe. Nossos primos nesse planeta — a vida selvagem — sendo reduzida e extinguida em um ritmo vertiginoso.

Só esse ano, foram autorizados mais de 86 novos agrotóxicos (ou como estão tentando chamar agora, defensores agrícolas) — alguns perigosíssimos, proibidos em outros países. Em 2018, foram registrados 450 novos agrotóxicos. Em 2017, 405. Em 2016, 277. Mais de 6 mil colmeias foram perdidas nos últimos meses só no Rio Grande do Sul.

Em um planeta absolutamente dominado por uma única espécie, vivendo seu ápice, era de pensar que talvez pelo menos se você for humano, o seu está estaria garantido. Mas essa glória não é para todos. Mesmo com a pobreza diminuindo cada vez mais, a desigualdade relativa só aumenta. Isso cria duas classes e rapidamente vai impermeabilizando as mobilidade social, além de aumentar a pressão social e a violência. Não somos iguais nem em acesso (pelo Estado) nem em recursos.

Além disso, enfrentamos colapsos de todos os tipos. Venezuelanos em situação de miséria e fome. Crise de imigrantes por guerra e miséria. Em São Paulo, pessoas buzinam em comemoração enquanto uma favela pega fogo — resultando em uma pessoa pobre andando a pé sozinha até o hospital com sua pele saindo do corpo.

A lista de problemas é inexaurível. Mas não preciso continuar, acho que você entendeu meu sentimento.

O que fazemos, então?

A tecnologia avança em ritmo exponencial. Nunca tivemos uma sociedade com tanto acesso à informação e com possibilidade de criar e compartilhar conteúdos. Por isso, avançamos um passo. Porém, possivelmente em nossa cabeça, nunca tivemos tão bem. Estamos cercados por falsos empoderamentos que tem muito pouco de impacto na vida real. Lidamos com os problemas do mundo com compartilhamentos, likes, memes, petições, pressões temporárias em empresas e governantes que estejam fazendo alguma coisa de errado. Porém isso é suficiente para transformar o mundo? Ou pelo menos, transformar no ritmo que estamos precisando?

Na superfície do que é nos dado, possuímos caminhos muito delimitados que podemos seguir como pessoas. Com uma sociedade aparentemente tão estruturada com papéis fixos a serem exercidos, é como se praticamente escolhéssemos um modelo dentro das possibilidades e simplesmente botássemos para rodar. Se somos bons, rodamos melhor. Se somos piores, temos um desempenho menor. E é isso (e nem isso é fácil). Continuamos (sobre)vivendo.

Os incontáveis problemas que estamos coletivamente envolvidos e, como habitantes do planeta, também temos responsabilidade? Com certeza alguém com mais responsabilidade, mais poder, influência, recursos e etc irá resolver? Certo? Sabe, eu até gostaria, mas estou tão ocupado aqui com minha própria jornada. Quem sabe quando der tudo certo pro meu lado e minha cabeça estiver mais tranquila, você não vem me falar disso de novo?

O que podemos fazer também? Sair plantando muda de árvore em qualquer pedacinho de terra? Virar mergulhador e ficar caçando plástico no mar? Sinceramente, eu não sei. É um tanto frustrante não ter uma resposta clara. A única coisa que é clara é que quanto mais temos acesso a recursos — desde alimentação, segurança, até educação — nossa responsabilidade nesse jogo que estamos todos metidos aumenta.

Nesse nó cego de nós cegos que estamos amarrados, talvez o primeiro passo seja encará-lo. Observá-lo com toda atenção. Talvez com sorte, em algum momento, consigamos encontrar aquela ponta solta para desfazer um pedacinho mínimo. Mas esse mínimo pode abrir espaço para outra pessoa desfazer outro pedacinho e outro pedacinho.

Agora, o poema.

A bomba (Carlos Drummond de Andrade)

A bomba
é uma flor de pânico apavorando os floricultores

A bomba
é o produto quintessente de um laboratório falido

A bomba
é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles

A bomba
é grotesca de tão metuenda e coça a perna

A bomba
dorme no domingo até que os morcegos esvoacem

A bomba
não tem preço não tem lugar não tem domicílio

A bomba
amanhã promete ser melhorzinha mas esquece

A bomba
não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está

A bomba
mente e sorri sem dente

A bomba
vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados

A bomba
é redonda que nem mesa redonda, e quadrada

A bomba
tem horas que sente falta de outra para cruzar

A bomba
multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação

A bomba
chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés

A bomba
faz week-end na Semana Santa

A bomba
tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia

A bomba
industrializou as térmites convertendo-as em balísticos interplanetários

A bomba
sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose, de verborréia

A bomba
não é séria, é conspicuamente tediosa

A bomba
envenena as crianças antes que comece a nascer

A bomba
continua a envenená-las no curso da vida

A bomba
respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais

A bomba
pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba

A bomba
é um cisco no olho da vida, e não sai

A bomba
é uma inflamação no ventre da primavera

A bomba
tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro, cobalto e ferro além da comparsaria

A bomba
tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.

A bomba
não admite que ninguém acorde sem motivo grave

A bomba
quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos

A bomba
mata só de pensarem que vem aí para matar

A bomba
dobra todas as línguas à sua turva sintaxe

A bomba
saboreia a morte com marshmallow

A bomba
arrota impostura e prosopéia política

A bomba
cria leopardos no quintal, eventualmente no living

A bomba
é podre

A bomba
gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado

A bomba
pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo

A bomba
declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade

A bomba
tem um clube fechadíssimo

A bomba
pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel

A bomba
é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris

A bomba
oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz

A bomba
não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas

A bomba
desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger velhos e criancinhas

A bomba
não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer

A bomba
é câncer

A bomba
vai à Lua, assovia e volta

A bomba
reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação em cadeia

A bomba
está abusando da glória de ser bomba

A bomba
não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba
o instante inefável

A bomba
fede

A bomba
é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina

A bomba
com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve

A bomba
não destruirá a vidaO homem
(tenho esperança) liquidará a bomba.